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Channel: arte – Viés | O outro lado da rede
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Tão bom… mas tem mérito?

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Vários livros em uma estante, incluindo três volumes da série "Gossip Girl" e um da série "Harry Potter".

Há razão para julgar alguém ao ver isto em sua estante? Foto: Carolina Chiao (http://www.flickr.com/photos/cchiao/2160017947/).

Existem diversas expressões na língua inglesa cuja falta de um equivalente – pelo menos um que não pareça muito forçado – me frustra constantemente. Uma delas é guilty pleasures, ou seja, “prazeres culposos”. Enquanto pode-se utilizar a expressão ao se referir a “prazeres” mais literais – comida, sexo, etc. – geralmente a vejo aplicada a obras de ficção consideradas mais lowbrow ou de uma tamanha falta de qualidade (em quaisquer aspectos) que se transforma em entretenimento puro. Gêneros inteiros – comédias românticas, filmes de ação, sitcoms, ficção detetivesca – podem ser considerados guilty pleasures.

A pergunta que se segue é óbvia: se são culposos, qual é a acusação? Crimes contra a estética e contra a sensibilidade sofisticada da academia? “Emburrecimento” do público? Perpetuação de narrativas tóxicas? Depende de para quem você pergunta. Pelo lado bom, há sempre a chance de ter a pena reduzida se o consumidor de mídias menos “artísticas” admitir que são puro entretenimento e que não houve qualquer espécie de deleite ou reação emocional além do hedonismo – se o leitor/espectador afirmar que o prazer que deriva da experiência é completamente superficial, apenas “pra deixar o cérebro em casa”.

Assim como a pornografia, esse tipo de ficção é algo para ser aproveitado por trás de portas fechadas, com a consciência marcada a ferro de que o que se está fazendo é errado em algum aspecto, mas é tão bom. Claro, é uma comparação imperfeita, como todas o são: a cultura puritana que tornou o sexo tabu é muito mais abrangente e enraizada do que a cultura mais elitizada que se declara uma espécie de gatekeeper do bom gosto; é mais aceitável declarar publicamente ter ido assistir um filme de Roland Emmerich do que ter passado as altas horas da noite “admirando a estética do corpo feminino” (ou masculino).

Critérios justos?

O crux da questão é que, ao recusar Herrmann Hesse em favor de J. K. Rowling, estar-se-ia não apenas negligenciando um dos grandes gênios da literatura, mas esquecendo a verdadeira razão de ser da arte, que é…

Só um segundo, está na ponta da língua…

Ah, sim. Estimular a reflexão a respeito da condição humana e de questões pertinentes à existência, à sociedade, etc. …Ou quem sabe era evocar emoções profundas e proporcionar uma experiência estética sublime? Ou apenas expressar as ideias e visões do artista, buscando ganhar ressonância externa ou por meio das diversas experiências que são comuns a uma pluralidade de seres humanos ou por meio da fascinação natural que temos pelo “outro”?

Bah, não importa. No fim, o que importa, isso sim, é que apenas algumas obras seletas são capazes de evocar emoções profundas, ou de trazer questões complexas à mesa de debate, ou de expressar algo simultaneamente singular e universal. Afinal, esses cavalheiros do cânone artístico são tão sublimes e belos que o único modo possível de exaltá-los é fazer escárnio à inteligência, à moral e ao gosto de todos os outros artistas e consumidores. Certo?

(Crédito da foto: Carolina Chiao, http://www.flickr.com/photos/cchiao/2160017947)


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